
Universidade em liquidação
A idéia de que os ricos devam pagar pelos pobres impossibilita a instituição de justiça social no país.
MARILENA CHAUI especial para a Folha
Volta à baila uma afirmação que, vira-e-mexe, reaparece na cena política: a da universidade pública paga como "uma questão de justiça social". A novidade, agora, está em considerar-se que tal medida já não corre o risco de impopularidade junto à opinião pública porque a sociedade brasileira, de um lado, teria absorvido a idéia de que o mercado é a "ultima ratio" da realidade e, de outro, será sempre favorável a medidas governamentais que, dizem alguns, tratam de "beneficiar maiorias em detrimento de minorias", mesmo que essas esperneiem com a perda de privilégios. Essa cantilena populista não é nova.
Foi entoada nos anos 70 e 80 com o refrão "os ricos devem pagar pelos pobres". Curiosamente, porém, não a ouvimos quando o governo despejou bilhões para beneficiar bancos e banqueiros, os quais, até prova em contrário, não parecem constituir exatamente a camada dos pobres. Também não a ouvimos nos processos de privatização da saúde e seus planos escorchantes. Nem quando se trata de definir as concessões para as telecomunicações. Por alguma razão insólita, volta e meia, no país dos 10 milhões de desempregados a idéia de começar a justiça social pela cobrança do ensino universitário público parece incendiar corações e mentes.
Mais surpreendente ainda é a aparente recepção positiva dessa idéia num país que não consegue acertar a declaração do Imposto de Renda nem taxar as grandes fortunas e que, portanto, não tem como saber legalmente quem são os ricos. O entusiasmo populista é tão grande que não se deixa afetar por esse argumento, nem mesmo por argumentos econômicos comparativos que mostram que nos países metropolitanos o investimento público no ensino superior é elevado (chega a ser a única fonte de financiamento, em alguns países europeus, que também praticam o sistema de bolsas para estudantes de graduação; e é fonte majoritária dos recursos investidos nas pesquisas de ponta, nos Estados Unidos).
O primeiro argumento em favor do ensino universitário público pago baseia-se num dado de fato: os filhos da classe média e da classe dominante estudam em caros colégios particulares, recebem uma formação aprimorada, fazem os cursinhos pré-vestibular (em geral, caríssimos) e tomam praticamente todas as vagas nas universidades públicas, delas excluindo os filhos da baixa classe média e da classe trabalhadora (que permanecem fora do ensino superior ou cursam universidades privadas dispendiosas e muitas vezes de baixo nível). A esse argumento acrescenta-se um segundo, também com base em fatos: fala-se nos elevados custos das universidades públicas, que poderiam ser reduzidos com a cobrança de mensalidades para os filhos das classes abastadas. Qual o logro do primeiro argumento?
Escamotear o principal, isto é, a devastação a que foi submetida a escola pública de primeiro e segundo graus quando a ditadura - que tinha no Conselho Federal de Educação os proprietários das escolas privadas- desviou recursos públicos para as escolas particulares, introduziu a licenciatura curta para formação de professores do ensino fundamental e médio, arrochou os salários e preparou o caminho da exclusão universitária para a baixa classe média e a classe trabalhadora, oferecendo-lhes como consolação o funesto e fracassado profissionalizante.
O argumento, portanto, abandona o campo das causas, opera com os efeitos da política dominante e propõe uma solução duplamente falsa: em primeiro lugar, porque deixa intocado o problema de origem; em segundo lugar, porque acaba levando para a universidade o mesmo projeto que destruiu a escola pública de primeiro e segundo graus. O segundo argumento é enganador, pois calcula os gastos tomando as verbas anuais das universidades públicas, dividindo-as pelo número de alunos, e tem como resultado uma cifra altíssima, porque deixa na sombra o fato de que nessas verbas estão incluídos hospitais universitários, centros de atendimento à população, centros de pesquisas, obras de infra-estrutura e aquisição de livros e equipamentos para laboratórios, além do salário dos inativos. Porém é enganador ainda por uma outra razão mais profunda. Com efeito, em muitas unidades da USP (não sabemos se o mesmo ocorre em outras universidades estaduais e federais) o ensino pago já está instituído com o uso de dois mecanismos principais:
1) por um decreto do MEC, estudantes de pós-graduação devem cumprir uma parte de seus créditos dando aulas para a graduação (maneira de não abrir concursos para contratar novos professores), e isso libera professores, que passam a oferecer cursos pagos de extensão universitária e que, por serem pagos, são altamente seletivos ou elitistas; 2) por meio de convênios com fundações e empresas privadas, são oferecidos cursos pagos de especialização e de pós-graduação com critérios próprios de seleção e de avaliação e, como no caso anterior, produzem discriminação econômico-social entre os estudantes. Em outras palavras, até prova em contrário, pagamento de cursos e igualdade de condições (isto é, justiça democrática) não andam juntos. A posição populista aparece como moderna e pragmática porque parece se basear em análises de problemas reais das universidades públicas e, se cala fundo nas mentes conservadoras, é porque desde o "milagre brasileiro" a universidade foi oferecida à opinião pública como meio certo de ascensão social e prestígio.
Essa proposta, porém, não é realmente pragmática porque não introduz (correta ou incorretamente) os fatos para encontrar uma solução localizada e imediata que resolveria, no curto prazo, alguns dos sérios problemas sociais brasileiros, dos quais a universidade pública gratuita é apenas um caso particular.
Também não é realista e pragmática porque a solução apontada não leva em conta aspectos práticos complicados e talvez insolúveis, como, por exemplo, a determinação de quem, com equidade, pode pagar e quanto pode pagar. Na verdade, os fatos e a solução são colocados para afirmar que se trata de uma questão de princípio, isto é, de justiça social. Vejamos então se, no nível dos princípios, a universidade pública paga, que à primeira vista pareceria ser um fator decisivo de justiça social, cumpriria efetivamente esse papel. Fala-se atualmente em "colapso da modernização" para referir o declínio do Estado de Bem-Estar e a sua correção racionalizadora pela economia política neoliberal. Esse "colapso", no entanto, pode ser analisado sob outra
perspectiva, se o percebermos, como faz Francisco de Oliveira, a partir das transformações econômicas e políticas introduzidas pelo próprio Estado de Bem-Estar com a criação do fundo público.
Visto sob a perspectiva da luta política, o neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado, o enxugamento do Estado e a desaparição do fundo público, mas a posição, no momento vitoriosa, que decide cortar o fundo público no pólo de financiamento dos bens e serviços públicos (ou o do salário indireto) e maximizar o uso da riqueza pública nos
investimentos exigidos pelo capital, cujos lucros não são suficientes para cobrir todas as possibilidades tecnológicas que ele mesmo abriu. Que o neoliberalismo é a opção preferencial pela acumulação e reprodução do capital, o montante das dívidas públicas dos Estados nacionais fala por si mesmo. Mas isso significa também que a luta democrática das classes populares está demarcada como luta pela gestão do fundo público, opondo-se à gestão neoliberal.
E é nesse campo democrático que se coloca, como questão de princípio, a universidade pública gratuita, juntamente com a melhoria da escola pública do primeiro e do segundo graus. Noutras palavras, a luta pela qualidade do ensino, pela boa formação dos professores e dos alunos, pela ampliação da rede pública escolar, pela dignidade dos salários de professores e funcionários, assim como a luta pela gratuidade da universidade pública e pela qualidade da formação e da pesquisa não são lutas de uma minoria barulhenta, nem de lobistas e corporativistas, mas a disputa democrática pela direção da aplicação do fundo público. É nesse campo que se põe a justiça social. De fato, que significa a cantilena "os ricos devem pagar pelos pobres"? Significa, em primeiro lugar, que os ricos são vistos como cidadãos (pagam impostos e mensalidades) e os
pobres não (mesmo que saibamos que, neste país, os ricos justamente não pagam impostos); em segundo lugar, que a educação não é vista como um direito de todos, mas como um direito dos ricos e uma benemerência para os pobres; em terceiro lugar, que a cidadania, reduzida ao pagamento de impostos e mensalidades, e o assistencialismo, como compaixão pelos deserdados, destroem qualquer possibilidade democrática e de justiça.
Ultrapassando a simples idéia de um regime político identificado à forma de governo, a democracia, como forma geral de uma sociedade, caracteriza-se pela afirmação da liberdade e da igualdade dos cidadãos e, por essa razão, o maior problema da democracia numa sociedade de classes é o da manutenção desses dois princípios sob os efeitos da desigualdade real. Eis por que a luta política democrática na sociedade de classes contemporânea passa pela gestão do fundo público pelo qual a igualdade se define como direito à igualdade de condições. Somente com a idéia de criação e conservação dos direitos estabelece-se o vínculo profundo entre democracia e a idéia de justiça. Embora a visão liberal reduza a democracia ao regime da lei da ordem, essa imagem deixa escapar o principal, isto é, que a democracia está fundada na noção de direitos e por isso mesmo está apta a diferenciá-los de privilégios e carências. Os primeiros são, por definição, particulares, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, porque deixariam de ser privilégios.
Carências, por sua vez, são sempre específicas e particulares, não conseguindo ultrapassar a especificidade e a particularidade rumo a um interesse comum nem universalizar-se num direito. A cantilena "os ricos devem pagar pelos pobres" reforça a polarização entre privilégio e carência e, longe de ser instrumento de justiça social, é a impossibilidade de que esta seja instituída pela ação criadora de direitos. A educação, em todos seus níveis, é um direito e, como tal, dever do Estado, isto é, da esfera pública na sociedade de classes, quando o fundo público não se destina exclusivamente ao capital.
Marilena Chaui é professora no departamento de filosofia da USP, autora de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras), entre outros. Ela escreve regularmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
Um comentário:
Eu sou a favor de uma cobrança daqueles que se formaram em universidades públicas. Caso ganhem acima de um valor determinado (digamos, 4 mil reais), pagassem parte do seu salário como imposto a ser revertido para o ensino superior, afinal de contas, grande parte do motivo para eles ganharem bem é justamente o fato de que A SOCIEDADE INVESTIU NELES...
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